segunda-feira, 29 de março de 2010

desenhos, smileys e upgrades


Dantes escrevia cartas em papel fino para não pesar no envelope, com caneta de tinta permanente. Cada uma era um mundo quase real, descrito à medida da pessoa a quem dirigia a carta, moldado segundo a suspeita do que para mim seria aquela pessoa.
Agora, com a Internet e o politicamente correcto respeito pelas árvores, escrevo pequenos e-mails - não se pode abusar da paciência de quem ainda a tem para ler, nem que sejam só pequenos recados electrónicos - depois de me ter desfeito de milhares de cartas em envelopes com selos de todo o mundo que, guardadas num caixote na garagem, arrendaram os seus segredos a uma numerosa colónia de bichinhos.
Hoje guardo o papel para desenhar e de vez em quando sujeito-me à curiosidade de quem me apanha nesses desempenhos suspeitos de quem ainda se agarra a coisas que já não se usam:
- Esse desenho é para a escola?
- Não.
- Então para que estás a fazê-lo.
- Porque gosto.
- Eu não gosto muito.
- Isso é que é pena.
- Não gosto da professora.
- Acontece.
- Só me manda fazer composições e desenhos chatos.
- É natural. As professoras existem para nos chatear.
- É.
- Então não vais ser professora quando fores grande.
- Não. Vou ser artista de telenovela.
- Isso é para chateares a tua professora?
- É para ganhar dinheiro.
- E para que queres tu o dinheiro?
- Para comprar chupas e coca-colas.
- É melhor guardares algum para o dentista, depois desse açúcar todo.
(Pausa.)
- Não gosto nada desse desenho. É muito feio.
- Já calculava. Podes ir-te embora.
- Porquê?
- Porque também não gosto nada de ti.
- Isso não se diz às crianças!
- Tens razão, não se diz às crianças bem educadas. O que não é o teu caso.
- Vou fazer queixa à minha mãe.
- E eu à minha.
Dantes as crianças assistiam aos desenhos como quem assistia a um filme. Agora preferem a segurança de um smiley mil vezes repetido entre amigos. Sem novidades que as obriguem a estar mais de uma fracção de segundo a olhar para uma imagem.
Noutros tempos as crianças eram capazes de entender que há um espaço intransponível entre elas e os adultos. Algumas eram até capazes de compreender que ele equivalia ao respeito. Hoje ganharam smileys e já ninguém considera necessário fazer o upgrade dos seus chips sem espaço para mensagens personalizadas.