terça-feira, 14 de abril de 2015

corações que não batem

Foto MMF
A certa altura entenderam as finas cabeças dirigentes que o centro das cidades devia ser preservado, afastando-se dele o trânsito e aumentando taxas e estacionamentos pagos para que as pessoas entendessem, de uma vez por todas, que o que de bom ali existia tinha de ser apreciado e, como tal, o seu usufruto taxado de acordo com o seu valor.
Cascais, cujo centro foi até há apenas um par de décadas um coração palpitante onde todos se encontravam e trocavam utilidades várias, transformou-se numa área que ninguém, além de desprevenidos turistas, frequenta.
Um cidadão de Cascais desce e sobe a rua Direita, o Largo Camões, a Valbom ou o Visconde da Luz ocasionalmente, quando algo de premente a isso o obriga e, se tem a infelicidade de parar para um café, paga-o como se de um ignorante estrangeiro se tratasse.
O centro passou a ser um local em que os quarteirões se transformaram em gigantescas rotundas, com o trânsito a passar atabalhoadamente da entrada para a saída do burgo, sem muitas alternativas para parar ou estacionar, a menos que se tenha uma carteira cheia e capaz de assumir o pagamento mínimo de um carro parado nos locais de estacionamento que invadiram tudo, tornando impossível que uma rua tenha alguma vez dois sentidos.
Não se julgue, no entanto, que o centro melhorou exponencialmente com estas medidas, porque quem tenta por ali passar de carro vê-se em palpos de aranha para se desenvencilhar do trânsito, com um surpreendente número de carrinhas e camiões de descargas a dificultar a passagem a qualquer hora e em qualquer lugar.
As caravanas de autocarros turísticos que estacionam em todas as vias também são uma praga que, com certeza, merecia melhor solução do que ocupar a frente da baía e da Cidadela, ou outros locais com vista que deviam ser mantidos livres para usufruto de todos.
Não foram pensadas as melhores soluções para o centro histórico de Cascais e, surpreendentemente, o poder instituído e a oposição insistem, depois de provas dadas em contrário, que impedir um fluxo normal de cidadãos a essa área esvaziou-a de interesse, uma vez que não são os edifícios, as calçadas, as palmeiras e a beira-mar que fazem a beleza de um local, se não os seus observadores e a empatia que criam com os locais.
O centro de Cascais tornou-se, portanto, o Shopping Cascais, onde as pessoas estacionam de graça, fazem compras, tomam café, comem o que lhes apetece, passeiam sem torcer os tornozelos na calçada esburacada, pagam as suas contas e regressam a casa em segurança. Ou o espantoso Cascais Vila, casado com o tenebroso terminal de autocarros e a inexplicavelmente suja e insegura passagem subterrânea que vem da estação de comboios.
Quando impedidas de gozar de forma livre um local, as pessoas encontram outros e fazem muitos quilómetros para se afastarem do que as sufoca.
O centro histórico da vila mais bem cotada do País tornou-se numa passagem para turistas e carteiristas, estes últimos na sua condição oficial de delinquentes ou de policiadores do bem público maior, que já ninguém sabe exactamente o que é nem onde está, depois de curtas e inexplicáveis passagens por cofres públicos.
Tentar obrigar as pessoas a pagar por uma riqueza, uma beleza e uma história que são elas que fazem, enquanto observadoras e participantes desses fenómenos, é um conceito fútil e, portanto, destruidor.
O coração das cidades só bate através do coração dos seus cidadãos. Impedi-los de se sentirem bem e livres nos centros que eles criaram e a que deram vida é fazer fugir a alma de qualquer local.

terça-feira, 7 de abril de 2015

adoradores do inútil a precisar de ajuda

Ilustração: MMF
Recebo, há duas semanas, chamadas da EDP Comercial que começam com uma pergunta despropositada sobre as vantagens que posso ter na minha factura de luz. Antes disso eram as chamadas das Águas de Cascais, a explicar a sorte que tinha por comunicar a leitura do contador e só pagar a água de dois em dois meses.
Na ignorância de quem escreve estes scripts embrutecidos e embrutecedores para os pobres diabos que tentam ganhar a vida com o marketing telefónico, resta-me lembrar os vampiros dos serviços públicos essenciais que os meus dados não são deles, muito menos para me assediarem e aborrecerem com questões idiotas.
Além de não terem o direito de comprar os meus dados, nem de me assediarem a horas impróprias com as suas campanhas, nada do que é meu lhes pertence para coisa nenhuma. Muito menos para me venderem serviços que mais não são do que simples estratagemas para nos porem a pagar coisas de que não precisamos.
Muito pior se torna a coisa quando compreendemos que o Governo e o Estado, entidades que sustentamos com os nossos impostos de muitíssimas formas, e que só existem para nos proteger e defender, também participam na compra e venda de dados de toda a espécie, da mesma forma que qualquer empresa sedenta de lucros põe isso em prática.
Antes dos grandes interesses económicos se assumirem tão descaradamente eram apenas considerados pelo que realmente são: uma voracidade anormal pelo armazenamento de lucros (ou poderes) que nunca terão capacidade para usar na totalidade e, portanto, desperdiçam. A ambição desmedida só dá origem a perdas igualmente desmedidas. Portanto, inúteis em género e quantidade.
Se é para isso que traficam os nossos dados, eles não vos pertencem logo à partida, nem nunca pertencerão. E isso é apenas mais uma parte da grande inutilidade que vos orienta. Pena é que o nosso dinheiro não seja gasto a impedir-vos de cometer crimes contra os outros e contra quem os pratica, visto que o resultado final é tão desolador que quem deles participa só pode estar doente e a precisar de ajuda.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Michel Houllebecq e o extremismo dos média



David Pujadas (22 Heures) faz desta entrevista uma espécie de inquisição ao trabalho do escritor. Ao que parece, ser um autor de grande sucesso obriga o romancista Michel Houllebecq a justificar todas as "intenções" da sua ficção.
Nesta sociedade obcecada com o controlo das ideias, o "grande jornalismo" perdeu de vista a sua vocação original para assumir o papel das grandes tendências deste século: ao indivíduo é exigido que se retrate sempre que se afasta da ideia decidida pelo establishment, enquanto aos políticos e figurões dominantes se sugere, timidamente, que nos elucidem sobre as suas determinações.
David Pujadas não ouve o entrevistado, ignora sistematicamente as suas respostas, tendo logo de início estabelecido que Michel Houllebecq gosta de ser polémico, e durante as suas intervenções, tem o cuidado de olhar com frequência para a câmara e assegurar que ele é a estrela da entrevista e que as suas palavras são dominantes durante a mesma.
Truques de algibeira para desacreditar o papel do escritor e a sua obra, que é uma das mais lidas actualmente. David Pujadas chega ao ponto de confundir o autor com asa suas personagens, como aquelas pessoas que, na rua, abordam os actores das telenovelas e os confrontam com os defeitos e qualidades das suas personagens.
Triste espectáculo o desta entrevista, em que o escritor é acusado de dar um presente a Marie Le Pen, com a publicação do seu último romance "Soumission", lançado este ano. Mal se ouve a resposta de Michel Houllebecq, afirmando que nem considera o "extremismo" descrito como tal.
Na realidade, ninguém está interessado em saber as razões do escritor quando tenta dar veracidade às suas personagens. O importante é convencer os seus leitores de que é um extremista e impedir os futuros leitores de comprarem a sua obra ou, fazendo-a, que a leiam sem os preconceitos do regime instituído.
No fundo o establishment sabe que o domínio das ideias é o único e verdadeiro poder, sendo pois de extrema importância condicionar o pensamento de todos através de conceitos que não são, nem inteligentes, nem verdades universais, mas apenas castradores e consubstanciadores do verdadeiro extremismo e do verdadeiro terror: a ideia de que as ideias têm de ser limitadas e que a violação deste facto constitui um perigo e, portanto, um crime.
O extremismo limita e, nesse aspecto, a ordem mundial a que estamos sujeitos é de uma castração ímpar. Michel Houllebecq pensa tão livremente quanto pode, escreve da mesma forma e, como muito bem diz, o que as pessoas pensam é com elas. E não há regime que possa impedir esse facto, embora as tentativas sejam muitas, repressivas e a maior tolice de que um ser humano é capaz.