quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

curto-circuitos de desentendimento


Falar sem para não é ser comunicativo; pelo contrário, é tentar evitar a comunicação. Andar sempre atrás dos outros a despejar episódios da vida própria e da alheia também não é partilhar ou socializar é massacre levado a cabo por gente que não faz a mínima ideia de como se pode estar com os outros.
Também não é sinceridade despejar tudo o que passa pela cabeça em qualquer circunstância; é apenas falta de senso comum e muito má educação.
Se as pessoas tivessem aproveitado mais a escola, evitariam muito do caos que se desenrola nas suas vidas. Por exemplo, aprendendo um pouco mais de gramática e a entender a estrutura da língua que falam e que é, afinal, um espelho da forma como pensam.
Muitos dos atritos e conflitos actuais são, sobretudo, resultado da fraquíssima compreensão da língua que a maioria esmagadora dos indivíduos tem. Não são capazes de interpretar correctamente o que ouvem ou lêem, não compreendem frases idiomáticas e, além da cultura, falta-lhes imenso vocabulário. Não lendo, além da informação que não têm, também não ganham prática de pensar de forma correcta, nem de estar em contacto com ideias e a forma como se formulam.
O resultado é, numa era de comunicação avassaladora como a que decorre, um constante ruído de mensagens que a maioria esmagadora das pessoas não tem capacidade para decifrar.
Para compensar isso, a resposta mais utilizada é criar mais ruído pessoal, como um eco e como alguns fazem quando, em presença de quem não fala o mesmo idioma, aumentam o volume da emissão de voz à laia de tradutor automático.
Ruído, sobre ruído, sobre ruído. Calem-se. Pelo menos o tempo suficiente para entenderem o imenso valor do silêncio. Para o sentirem e compreenderem a paz e a clareza que traz.
Se possível, comprem uma gramática pequenina e leiam duas páginas por dia. Alguma coisa há-de resultar do exercício que não se deram ao trabalho de fazer na escola.
Ter uma multidão barulhenta sempre agarrada aos novos meios de comunicação, sem capacidades básicas para os utilizar, não faz do conjunto uma sociedade mais informada. O retrato mais honesto é o de um gigantesco armazém de aparelhos em constantes curto-circuitos de desentendimento.

domingo, 21 de janeiro de 2018

voo cego

"snake dream" by Marita Moreno Ferreira (pen on paper)
Há alturas em que tem mesmo de ser assim: largar a pele que já não nos serve e abraçar uma nova, pronta para recomeços e experiências diferentes. 
Sonhar com estas criaturas é um desejo expresso de renovar a vida e as ideias feitas que alimentámos durante anos. Reconhecer que se está consciente e farto dos velhos métodos. Uma declaração de que se está pronto para uma inebriante e poderosa lufada de ar fresco.
Venha daí o tornado e aceite-se o voo cego que se vai apoderar de nós.

sábado, 20 de janeiro de 2018

vida com escamas

Os filmes de acção têm aquela característica VS (Vida Selvagem) ou NG (National Geographic) em que se anda sempre a correr para não se ser comido, morto, torturado ou aniquilado. São essencialmente filmes de terror em que nos apresentam um personagem simpático com que nos identificamos e depois põem perante um isco e obrigam a esbaforir-se em tentativas de sobrevivência até ao final da história.
Na vida real não é preciso inventar tramas e subtramas para navegar num mar de angústias de sobrevivência. Seria talvez mais prático encarnar nas escamas de um peixinho e abreviar o sofrimento para o nível não foi desta que fui comido e ui, fui comido. Níveis mais simples e menos cansativos. Se calhar, até com menos consciência VS e NG.
Na verdade, a forma de vida actual parece desenhada para nos lembrar que estamos apenas num nível VS e NG absurdamente sofisticado. Não satisfeitos com todos os imprevistos e perigos naturais da nossa viagem por este planeta, ainda tivemos o trabalho de inventar entidades colectivas e virtuais que nos perseguem, exploram e ameaçam a todo o instante, protegidas por mais leis e ideias feitas que nunca nos passaria pela cabeça imaginar como dignas de nos definir como indivíduos.
Chamamos-lhe civilização, cultura, desenvolvimento, mas... São apenas viagens de peixes graúdos e, sinceramente, muito mais estúpidos do que os mergulhos dos peixinhos que só esperam sobreviver um ou dois segundos mais do na escamação anterior.
E será que somos, como eles, capazes de apreciar simplesmente o prazer de um mergulho no desconhecido? Claro que não. Nem isso nos parece suficientemente atraente na ilusão de que somos todos fantasticamente inteligentes e capazes de controlar o filme das nossas vidas.
(Enganei-me no guião; este é, evidentemente, o de uma comédia.)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ouvem os passos?

foto MMF
Parece que vem alguém atrás de nós... Ouviu os passos? 
Acontece com frequência, quando se caminha pelo passadiço da duna da Cresmina, ouvir o barulho das tábuas a ceder sob o peso de quem por ali anda.
O curioso é que, muitas vezes, ao olhar para trás para confirmar que vem gente e ceder a passagem, não está ninguém próximo e o passeio continua, como se nada se tivesse passado.
O fenómeno pode repetir-se várias vezes durante a caminhada e, a menos que as alucinações auditivas façam parte da rotina destes passeios, não parece haver qualquer explicação racional para o som dos passos que seguem os caminhantes.
Certos locais parecem coleccionar histórias fantásticas e nem sequer lhes falta a imaginação popular a embelezar alguns factos menos comuns que lhes são característicos.
A Cresmina parece começar a desvendar uma vida muito própria, com este tipo de singularidades. Se conhece alguma, faça o seu relato e contribua para desvendar os seus mistérios. Pelos vistos, há mais do que os olhos vêem...