segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

reset






Há dias em que a cabeça está como estas nuvens, um emaranhado de coisas quase impossíveis de alcançar. Mas é segunda-feira e ainda bem que a cabeça está preenchida e há coisas para tratar, ponderar, pedir, entregar, sugerir, elucidar.
Depois, uma pausa para ir até ao mar reorganizar as ideias, assim à força de ventanias e frios a bater na cara. É como um reset da coisa toda, sem necessidade de recorrer a um botão, que nisso a massa cinzenta é coisa divina. Um único pensamento dá direito a recomeçar tudo de fresco sem necessidade do suporte físico de um botão. Melhor? Impossível...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

rescaldos


Ontem, antecipando a lógica possibilidade de adesão à greve de uma empregada doméstica que ainda não existe cá em casa, aspirei. Talvez por ser dia de paralisação geral, recebi uma chamada do centro de saúde local a dizer que o meu pedido de mudança de médico de família não vai acontecer. Haverá alguma ligação possível entre estes dois eventos? À partida parece que não, mas as aparências iludem...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

os sobrinhos do capitão


Alguém se lembrou de, em Novembro, pedir às pessoas para substituírem, em Novembro, a sua fotografia pela do seu herói favorito de banda desenhada. A minha escolha foram Os Sobrinhos do Capitão, que conheci através dos suplementos de banda desenhada dos jornais lisboetas que o meu avô materno nos enviava para Moçambique.
A energia de Hans e Fritz era irresistível. E a paixão mantém-se.
Os Katzenjammer Kids, ou Os Sobrinhos do Capitão nasceram há 112 anos. Também foram publicados com a denominação Hans and Fritz, nome dos gémeos endiabrados da BD, e The Captain and the Kids.
Os personagens centrais eram o Capitão, a Mama, o Coronel (inspector escolar, caça-gazeteiros, amigo do Capitão) e Fritz e Hans, os filhos gémeos da Mama, que nunca foram sobrinhos realmente do Capitão.
As histórias passavam-se numa colónia alemã de uma ilha tropical, onde a Mama tinha uma pensão. Um dos hóspedes é precisamente o Capitão, ex-marinheiro, cujo navio naufragou naquela costa, e outro o Coronel.Rudolph Dirks, um alemão naturalizado norte-americano, foi o criador desta BD para o The New York Times, onde apareceu pela primeira vez a 12 de Dezembro de 1897. Dirks inspirou-se nos bonecos Max e Moritz, criados em 1860 por Wilhelm Bush, que tiveram suas aventuras traduzidas para o português por Olavo Bilac, em 1915.
Um dos grandes clássicos da banda desenhada norte-americana é a mais antiga BD do mundo e a segunda a ser publicada em todo o mundo – a primeira foi Yellow Kid.
Durante a Primeira Guerra os personagens passaram a ser holandeses por causa da antipatia mundial pelos alemães. Mas recuperaram a nacionalidade original em 1920.Rudolph Dirk desenhou os Katzenjammer Kids até 1914, altura em que foi substituído por Harold Knerr.Em 1898 a série teve a sua primeira versão cinematográfica. Entre 1917 e 1918, foram produzidos dezassete filmes de desenhos animados mudos. E em 1938,Os Sobrinhos do Capitão tornaram-se a primeira série animada da Metro Goldwin Mayer.
A Gradiva publicou em 2003 um álbum desta banda desenhada, já pela pena de Joe Musial.

domingo, 21 de novembro de 2010

coisas entediantes

Por acaso até acho graça a quem se manifesta contra a NATO e depois me manda emails contra a mutilação feminina nos países muçulmanos, mais contra o apedrejamento de mulheres adulteras (ou não). Onde é que está a lógica? E, sobretudo, onde estavam os manifestantes anti-guerra e anti-genocídios e políticamente correctos no 11 de Setembro?
A manifestar-se contra os Estados Unidos, dizia-me ontem uma amiga. Sim, porque os culpados da morte de mais de três mil pessoas nas torres gémeas foram, sem dúvida, os EUA... Aliás, os terroristas e os totalitaristas só aparecem única e exclusivamente por culpa dos EUA.
O mundo é mesmo simples para alguns: para os extremistas ocidentais, o Demónio vive no Médio Oriente; para os extremistas a Oriente, o mal está nos EUA e nos seus aliados. Os manifestantes Green Peace e anti-Nato e anti-guerra e anti-mutilação e anti-discriminação, esses iluminados que entendem tudo, condenam sobretudo quem não procede como eles? Ah, mas ser anti é que está a dar.
Nunca serei a favor da guerra, mas também não sou de dar a outra face. Acredito que devemos confrontar quem age contra nós para que não se instale a impressão de que calo e consinto. Mas não me ocorre jamais ser contra uma organização que, na hora do aperto, vai dar o corpo ao manifesto para continuar a separar as liberdades democráticas da tirania dos regimes totalitários.
E não estou aqui a dizer que a tirania vem do Islão, porque infelizmente, sabemos que na maioria dos países islâmicos há muita gente a ser violentamente reprimida pelos regimes que não aceitam outras liberdades senão as de quem pode e manda.
Estou a afirmar que prefiro uma NATO, contra a qual ainda tenho capacidade de me manifestar, se quiser, a saber que posso levar um tiro se mostrar que não estou de acordo com o ditador de serviço.
As guerras e os seus métodos não são justas. Mas que raio de coerência há em protestar contra os EUA e a NATO, e achar que todo o terrorismo se justifica por causa das políticas externas ocidentais? Então os outros países são compostos de querubins de auréola que não conspiram, nem são capazes de gerar políticas igualmente cruéis e genocidas?
É muito mais fácil pensar a preto e branco, claro, escolher um lado que fique bem e não pensar antes de gritar palavras de ordem e excitados argumentos para eliminar qualquer possibilidade de resposta que não seja igualmente facciosa. Que tédio...
Entretanto, há um grupo de ditadores que conseguiu capitalizar a imagem de um terceiro mundo em que só existem vítimas e inocentes. Os inocentes ocidentais não contam e são culpados até prova em contrário. É preciso ter paciência, caramba.

domingo, 7 de novembro de 2010

o Apocalipse bem espremido


Se Portugal fosse uma equipa e os seus governantes o colectivo de técnicos a orientá-la, parecer-me-ia muito mau e desadequado ter como motivação um cenário negro e de catástrofe em que ninguém acredita nas possibilidades de vitória.
É assim que eu vejo a crise e a inacreditável postura dos políticos no poder e não só. Já para não falar na esmagadora maioria dos economistas que botam faladura apenas para nos convencer que chegámos ao Apocalipse e daqui a nada o FMI vai mandar os (arc)anjos Miguel, Gabriel, Rafael e um quarto, de que se desconhece o nome, repor a ordem a ferro e fogo.
Não chego a perceber se toda a gente perdeu realmente o juízo, ou se acreditam mesmo nesta megalómana campanha de propaganda da crise.
É que esta coisa de fazerem de conta que acreditam que é o mundo/planeta todo que está em crise e não o sistema financeiro (em pirâmide) que está a rebentar pelas costuras, como um qualquer esquema de Dona Branca, é mesmo possidónia.
Porque, afinal, ninguém vai morrer por causa da crise. Muitas pessoas vão passar muito mal, claro que vão. Mas há sempre muita gente a passar mal e ninguém dizia que era da crise. Agora é que a dita se transformou no demo, na coisa a temer.
Até porque o medo é a arma certa para paralisar os crentes e os distrair daquilo que realmente está a acontecer: o sistema financeiro, assim como está, chegou a um ponto de ruptura e é preciso estabelecer o pânico para dar tempo ao exército de retaguarda para se organizar e se pôr em campo com um sistema de reserva.
No fim, não vai mudar nada, o mundo não vai acabar, os esfomeados vão morrer à míngua como sempre morreram e morrerão, fazem-se uns saneamentos revitalizantes, acaba-se com o euro ou outra moeda qualquer para dar lugar a outros e à inevitável alternância, e já está.
Daqui a dez anos toda a gente vai escrever sobre esta crise e apontar algumas das suas verdadeiras razões. Mas não vai mudar mais nada, em rigor, do que algumas pessoas num punhado de gabinetes. A menos que entretanto alguém beba café a mais e desate para aí aos tiros até lhe darem cabo do canastro.
Como dizia o outro pikeno, "deixem-nos trabalhar"...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

o arrojo que falta

Não consigo resistir às imagens pintadas nas paredes a cair de armazéns e prédios devolutos. Traços seguros, ousados, capazes de atrair todos os olhares, mesmo que de reprovação. Há uma força contida nesta arte que muitas vezes falta nas galerias comerciais, espaços de artistas domesticados pela promessa de muitos euros e glórias póstumas. Não quero com isto dizer que os artistas não devam reivindicar para si os frutos do seu trabalho. Pelo contrário. O que é importante, para que isso aconteça, é que os galeristas deixem de pensar apenas em telas bonitas para decorar as salas de estar da morna classe média quase alta e comecem a reivindicar também arrojo e rebeldia, aquilo de que é feita a arte que fica e não se esquece na próxima leva de decoração caseira.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

desliguem o som!


Por que razão hão-de as pessoas falar tão alto nos cafés e nos restaurantes que se torna insuportável frequentá-los? Será por isso que agora tudo o que é espelunca para servir cafés tem música pimba a escorrer pelos altifalantes? E o barulho que fazem a arrumar a louça e a arrastar cadeiras e mesas? Será normal?
De uma coisa tenho a certeza: é quase impossível garantir um mínimo de silêncio em casa, na rua, nos locais públicos. Outra pergunta: haverá legislação efectiva que impeça as pessoas de enlouquecer com o barulho que toda a gente se lembra de produzir?
Não faço ideia se é normal haver adolescentes retardados com os telemóveis aos berros no metropolitano a debitar música para a carruagem inteira, nem se as pessoas fazem ideia das tristes figuras que produzem quando no meio da rua, em qualquer lado, têm conversas privadas aos gritos para o telemóvel.
Nos condomínios privados, por exemplo, poderia supor-se que haveria outro recato do que o da vizinha aos gritos com os filhos endiabrados, mas é uma ideia enganadora. Da ventilação dos prédios ao barulho dos elevadores, passando pela chinfrineira dos cortadores de relva ou dos aspersores de água nas zonas verdes, é um inferno de ruídos que nunca cessa.
Para tentar de algum modo isolar a minha existência, comprei um MP3 para abafar com música todo o clamor alheio. Só para descobrir que tenho de ligar o som no máximo para ouvir qualquer coisa - e tem de ser algo barulhento, porque a música clássica e o jazz, mesmo no máximo das capacidades do aparelho, não resistem ao ruído exterior.
Achava eu que os portugueses eram inexplicavelmente tensos, irritadiços e mal dispostos. Pudera... Sempre que estou em Portugal, acontece-me o mesmo e, acreditem: é este barulho infernal em todo o lado que dá cabo do nosso ânimo e da nossa disposição.
Por favor: desliguem o som!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

silêncio que estou a ler


Eram momentos sagrados, os do pequeno-almoço tomado em silêncio, a ler banda desenhada. Às vezes lanches, outras vezes, o prazer de ler com uma taça de papa misturada com leite condensado.
Durante anos, o meu avô materno coleccionou todos os suplementos de banda desenhada dos jornais portugueses, que enviava para as netas, em Moçambique.
A recepção daqueles pacotes era um momento alto das nossas vidas. A mãe Aida abria a encomenda à nossa frente, para não se perder nada. E decretava a seguir o ritmo a que se consumiria aquela leitura.
Uma vez por mês chegava também o caixote dos livros, encomendados numa livraria da Beira. E mais uma vez se repetia o ritual. E a distribuição das leituras.
Os livros foram sempre tantos que, ao sair de Moçambique, houve que tomar a dolorosa decisão de lá deixar quase tudo. A doação à biblioteca de Inhambane aliviou um pouco a separação. Mas confesso que me custou deixar as pilhas de banda desenhada para trás.
Já voltei a Inhambane e à biblioteca, mas os livros não estavam lá. E os leitores pagam 5 meticais para levantar livros. A parte dedicada aos livros ocupa agora uma sala do edifício alocado à polícia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

flores celestiais


Dos céus vêm sinais, diriam alguns. Como esta 'flor' desenhada no céu por nuvens dispersas pelo vento. Indicativo da fúria divina numa marca indiciadora de desagrados vários? Ou sinónimo de vindouras benesses? A cada qual o seu milagre, digo eu, que já sei que nisto de deuses e diabos é preciso aprendermos a dar-nos com todos. Pela vida fora, fartamos-nos de passar por festas e infernos, muitos deles de bastante menor beleza do que esta imagem. Ao menos aqui assistimos ao ocasional 'floreado celestial' sem outras consequências que as de um magnífico espectáculo.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

as flores da aida


São coisas familiares, essas da terra revolvida e regada que cheira a chuva, das saquetas de papel com sementes, das canas para segurar os pés mais frágeis, dos vasos espalhados por todo o lado e das regas ao final da tarde. São as plantas e as flores da Aida, que sempre gostou de pegar em folhas e hastezinhas para as transformar em plantas e flores viçosas. Ainda ontem me mostrou esta (a da fotografia), mais um dos resultados do seu "dedo verde", que é, como dizem os ingleses, o jeito ou dom para as plantas e para os jardins.
É assim a Aida, no meio dos seus vasos e das lagartixas e osgas a quem também vai dando abrigo. Houve tempos em que teve como companheira uma fiel lagartixa que vivia na máquina da costura.
Se quisesse esboçar-vos uma imagem dela, seria com certeza no meio das plantas e dos animais que tem resgatado a vida inteira, pedacinhos deste mundo a que ninguém mais liga e a que ela restitui vida e significado.
Pensar na Aida é assim como pensar numa mãe de tudo e todos, sempre rodeada de uma aura recheada pelo espírito de tudo e todos quantos foi pondo debaixo da sua asa.

domingo, 15 de agosto de 2010

solidez e força


Sempre me fascinou a solidez e a força das peças da era industrial. Vá lá saber-se porquê. Há uma força nestes objectos, dos quais ignoro quase em absoluto o propósito, que sempre se me impôs como digna de admiração. O design podia não ser imaginativo ou delicado, mas competia vigorosamente com as imagens dos estados totalitários, assim como o Novo ou o Soviético. Com uma ligação quase esmagadora ao material. De alguma forma, inspiravam segurança e, nessa medida, também contribuíram para o êxito de certo tipo de ideologias.

sábado, 14 de agosto de 2010

conversas entre nuvens


Cascais em boa companhia, a misturar três paixões: barcos e mar, luminosidades fugitivas entre nuvens velozes e a conversa que fica a flutuar no ouvido muito depois de ter tido lugar.
Sempre me encantou um céu carregado de nuvens em dias de vento, que é como as ideias que nos passam pela cabeça. Rápidas, mas tranquilas como um passeio de barco sonolento, com vagar para a vadiagem de espírito.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

equilíbrios inimitáveis


Um simples passeio pela rua pode promover encontros destes, com uma imagem estampada a spray na parede de um prédio devoluto. Uma fracção de história da cidade de braço dado com uma moderna forma de expressão, uma combinação a que é impossível resistir. Se ao menos fôssemos capazes de reproduzir na vida prática todo o sentido que se imprime a um conjunto artístico como este...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

deixa o prolongamento electrónico dos meus neurónios em paz!



Tinha para aí quinze anos quando alguém se lembrou de me emprestar o livro How to Win Friends and Influence People, do Dale Carnegie. Na altura, sob o cerrado ataque hormonal típico de qualquer adolescente, entrava muda e saía calada na esperança de que ninguém desse por mim e pelas minhas inenarráveis elucubrações.
Lembro-me de ter pensado que só um americano se poderia ter lembrado de fazer dinheiro à conta do senso comum, ainda por cima na forma de cábulas de consulta rápida - pelo menos para os mais crentes.
Hoje não precisamos de drugstore best-sellers para nos convencermos de que precisamos de um manual de auto-ajuda para sobreviver a tudo e a todos. Hoje há o email e toda a gente se acha no direito de nos bombardear com mensagens de aparente profundidade sobre a ideal forma de estar na vida, de encarar as contrariedades, de usar a água para emagrecer, mantras para atingir não sei que orgasmo cósmico, orações para apaziguar a fúria divina e ganhar uns milagrosos tostões.
Toda a gente copia e recopia quilómetros e quilómetros de sentenças, frases de gente célebre, soluções fantásticas, observações agudíssimas e dietas, debita segredos para curas inacreditáveis, avisos sobre uma próxima visita de extra-terrestres e imagens nunca vistas de espíritos, aparições e outras duvidosas questões.
E nesse absurdo esforço diário de comunicar a todos a melhor receita para o bem-estar e a sobrevivência da espécie, à mistura com apresentações enfadonhamente açucaradas com fotografias de cães e gatos abraçados, ou smileys sorridentes a quem só falta ouvir a tão americana expressão Oh My God, o que nunca ocorre a ninguém é fazer o que tão generosamente partilham com toda a gente.
Por que será então todo esse afã de tranquilizar a consciência própria e alheia com tão hercúleas passagens de testemunho? Será pura e simplesmente para arruinar e desesperar os produtores de best-sellers? Ou para contrariar a tinta manchada de sangue dos jornais?
O certo é que, pessoalmente, me sinto castigada por essa avalanche de mensagens que justificam até ao esgotamento a célebre expressão de boas intenções está o inferno cheio. A ponto de sentir um nó no estômago quando abro a minha caixa do correio e dou de caras com o assunto de um ou trinta desses emails.
Já pensei mesmo em comercializar um software capaz de detectar todas essas mensagens filosóficas, pejadas de conselhos e de auto-ajuda, que envie de imediato aos remetentes uma resposta curta e grossa: Salva-te a ti próprio e deixa o prolongamento electrónico dos meus neurónios em paz!
O pior é que corria o risco de receber essa mesma mensagem como um reencaminhamento de algum cidadão que não conheço, mas que caçou o meu endereço electrónico num outro reencaminhamento dessa perigosa espécie de utilizadores de emails que é incapaz de limpar os endereços dos outros e que resolve fazer suas todas as mensagens que lhe chegam à caixa de correio, despachando-as num ápice para as vítimas seguintes.
Se vivesse nos dias de hoje, duvido que o senhor Carnegie tivesse alguma vez escrito os primeiros manuais de auto-ajuda. Ou que os budas mantivessem o seu sorriso de bonomia depois de milhões e milhões de flores de lótus enviadas em seu nome.
Ufa!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

atirar a democracia contra si própria


Parecendo até uma medida extremista, esta de tentar a proibição do uso da burka em toda a Europa, por atentar contra os direitos de indivíduos de outros credos que não os cristãos, merece no entanto alguma ponderação.
É que a Europa, com os seus não muito antigos direitos e liberdades adquiridos, já está a braços com algumas das consequências do reconhecimento desses mesmos direitos. Na maioria dos países com uma larga imigração oriunda de países islâmicos, por exemplo, as liberdades e direitos dos cidadãos permitem que os estrangeiros se estabeleçam e se integrem, fazendo mesmo parte dos órgãos locais de governo e decisão.
O que começa então a acontecer? A influência dessas comunidades começa a exercer-se no sentido de restringir certos direitos e liberdades dos indivíduos e é claro que as mulheres e os seus ainda frágeis direitos são as primeiras atingidas.
Ou seja, as liberdades servem para alguns indivíduos limitarem essas mesmas liberdades, visto que o peso das comunidades estrangeiras a nível de governo local ameaça desequilibrar o fiel da balança.
A tentativa da proibição do uso da burka é apenas a ponta do icebergue. Há muito mais do que parece por detrás de um simples véu. E não são apenas os véus muçulmanos que tentam abanar o edifício dos direitos e liberdades. Há muitos outros grupos religiosos, cristãos e nem por isso, que estão muito activos e que também usam com exímia as leis dos países europeus em seu proveito.
Há muito tempo que os líderes religiosos exploram a fraqueza do exercício democrático, virando-o contra si próprio. E se as democracias resolverem fincar o pé e legislar contra determinados direitos fundamentais por causa dos abusos, incorrem no risco de abrir precedentes para outras restrições.
Ora, o que eu gostava era de ver um homem de leis chegar-se à frente e explicar que o universo do direito também está a evoluir e que é possível encontrar sistemas que sirvam a liberdade sem ferir o que é fundamental para o indivíduo.
E talvez, por arrasto, se tenha a sorte de conseguir que um punhado de jornalistas desista de fazer manchetes com lugares comuns e encha os títulos dos noticiários de frases bem formuladas, que além de bons títulos e boa propaganda, sirvam para levantar e debater as verdadeiras questões.



segunda-feira, 29 de março de 2010

desenhos, smileys e upgrades


Dantes escrevia cartas em papel fino para não pesar no envelope, com caneta de tinta permanente. Cada uma era um mundo quase real, descrito à medida da pessoa a quem dirigia a carta, moldado segundo a suspeita do que para mim seria aquela pessoa.
Agora, com a Internet e o politicamente correcto respeito pelas árvores, escrevo pequenos e-mails - não se pode abusar da paciência de quem ainda a tem para ler, nem que sejam só pequenos recados electrónicos - depois de me ter desfeito de milhares de cartas em envelopes com selos de todo o mundo que, guardadas num caixote na garagem, arrendaram os seus segredos a uma numerosa colónia de bichinhos.
Hoje guardo o papel para desenhar e de vez em quando sujeito-me à curiosidade de quem me apanha nesses desempenhos suspeitos de quem ainda se agarra a coisas que já não se usam:
- Esse desenho é para a escola?
- Não.
- Então para que estás a fazê-lo.
- Porque gosto.
- Eu não gosto muito.
- Isso é que é pena.
- Não gosto da professora.
- Acontece.
- Só me manda fazer composições e desenhos chatos.
- É natural. As professoras existem para nos chatear.
- É.
- Então não vais ser professora quando fores grande.
- Não. Vou ser artista de telenovela.
- Isso é para chateares a tua professora?
- É para ganhar dinheiro.
- E para que queres tu o dinheiro?
- Para comprar chupas e coca-colas.
- É melhor guardares algum para o dentista, depois desse açúcar todo.
(Pausa.)
- Não gosto nada desse desenho. É muito feio.
- Já calculava. Podes ir-te embora.
- Porquê?
- Porque também não gosto nada de ti.
- Isso não se diz às crianças!
- Tens razão, não se diz às crianças bem educadas. O que não é o teu caso.
- Vou fazer queixa à minha mãe.
- E eu à minha.
Dantes as crianças assistiam aos desenhos como quem assistia a um filme. Agora preferem a segurança de um smiley mil vezes repetido entre amigos. Sem novidades que as obriguem a estar mais de uma fracção de segundo a olhar para uma imagem.
Noutros tempos as crianças eram capazes de entender que há um espaço intransponível entre elas e os adultos. Algumas eram até capazes de compreender que ele equivalia ao respeito. Hoje ganharam smileys e já ninguém considera necessário fazer o upgrade dos seus chips sem espaço para mensagens personalizadas.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

tentar escapar

Ao contrário dos votos trocados no princípio de outros anos, os deste ano podem começar como os desta conversa, tida há um bocado com um amigo:
- Que tal vai isso?
- Vai indo. Vou escapando aos despedimentos. E tu?
- Trabalhando por conta própria. A tentar fugir ao desemprego.
- Pois. Não está fácil.
- Há que ter calma. Não podemos desatar todos a matar gente e a assaltar bancos, até porque não somos concorrência para os de leste.
- Yah. Vai um dia de cada vez.
- E quando tiver de ser, sempre podemos ir acampar para Belém e São Bento, com a protecção da Guarda Nacional Republicana e outras forças de segurança nacionais. Nem tudo está perdido.
- Pois não. Bem, volto ao trabalho.
- Ok. Também tenho de responder a uns quantos anúncios de emprego.
- Há alguma coisa de jeito?
- Claro que não. Só as empresas de telecomunicações a pedir pessoas para massacrar os incautos pelo telefone.
- Isso dá alguma coisa?
- Despesa, é o que dá. Aquela coisa dos objectivos, sabes? Números aliciantes, mas impossíveis. Pretextos para não pagar o trabalho de ninguém. Recrutam dezenas de pessoas todas as semanas.
- E a malta cai nisso?
- Que remédio. O desespero é péssimo conselheiro. Depois ainda é pior: acaba-se a massa para os transportes e a malta desiste. O passo seguinte é o centro de emprego. Mas como desististe do trabalho, não tens direito a nada.
- Incrível. E ninguém se queixa?
- Não vale a pena. No centro de emprego garantem que nas grandes companhias ninguém toca. O que deve ser verdade, porque continuam a operar no mesmo esquema. E são sempre as mesmas.
- Quais são as alternativas?
- Podes sempre embarcar numa de suplementos alimentares miraculosos, máquinas de filtrar água, aspiradores turbo, máquinas de café expresso, enciclopédias e outros esquemas de pirâmide que vão dar ao mesmo. Em qualquer dos casos, no desespero de cumprires objectivos, lixas todos os teus contactos pessoais. Até podes ter dinheiro para o café, mas ficas sem ninguém para o tomar contigo.
- Isto está mesmo lixado.
- Olha que ainda não. Vês algum governante a tomar medidas para isto?
- Não.
- Então? A malta ainda aguenta. Enquanto os bancos nos derem crédito com o dinheiro dos impostos que nos esmifram, ainda se aguenta.
- E depois?
- Jardins de São Bento. Ajuda connosco.