terça-feira, 27 de dezembro de 2016

à espera de tudo


Sonolências benignas atacam quando chega a altura de fazer uma lista de desejos, votos ou compromissos para o próximo ano. Naturalmente. Porque o que queremos é tudo. Tudo o que somos e desejamos, para nós e para os outros. Como é possível pôr isso numa lista? Sem esquecer coisas importantes que por aí vêm e que ainda nem suspeitamos o que são?
Como adivinhar o que nos vai acontecer ao dobrar uma esquina, com quem nos vamos cruzar ou os desejos que estão tão escondidos cá dentro que nem sequer sonhamos que lá estão?
É mais fácil descansar a cabeça e esperar que tudo aconteça sem as distrações dos improváveis delírios da imaginação. O que nos acontece todos os dias é bem mais surpreendente do que se pode esperar e há que estar livre para ver tudo sem reservas. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

espíritos iluminados

'Christmas Fun' - pen on paper (105x149 mm)

Este ano o Festival das Luzes (Hanukkah) calha a 25 de Dezembro. Nos dias escuros de inverno, acende-se todos os dias uma vela para iluminar o mundo. Jesus também veio para trazer uma nova luz à nossa visão da vida. 
Nicolau, o bem-humorado Pai Natal, desperta a nossa boa disposição e esperança nos sonhos. Como crianças, acreditamos mais nesta altura. Renovamos o espírito da luz e deixamos que nos lembre a fé no potencial da vida.
Partilhamos refeições e presentes com os amigos e a família. Damos e recebemos. Aceitamos, ou permitimo-nos receber, essa luz que procuramos todos os dias, as ideias e os sonhos que perseguimos durante a vida. Descobrimos, no último mês do ano, que é de novo possível alimentar esperanças e deixarmo-nos inundar por essa parte do nosso espírito que mantém a luz acesa dentro de nós.
Lembramo-nos, uma vez por ano, do verdadeiro sentido da vida, do amor que se expande sempre e que tudo torna possível. É a inspiração que nos transporta para um novo ciclo a transbordar de possibilidades e escolhas diferentes.
Uma luz que não se apaga, mas que se esquece quando nos deixamos embalar pela parca e árida visão materialista do mundo. Por que não acabar e começar este e o próximo ano mantendo a nossa chama acesa?
Boas Festas, espíritos iluminados.

domingo, 16 de outubro de 2016

no limbo do domingo

Fotografia: Maria Isabel Mota
Domingos são aqueles dias de limbo, entre o lazer do fim-de-semana e a preparação para a agitação de um novo ciclo de trabalho. Entre o passado e o futuro, a pausa e a acção.
Aqui e agora, são momentos de escolha, de decisões, de karma (acção) a determinar os efeitos que se seguem.
Grandes oportunidades de crescimento pessoal e espiritual surgem logo na sexta-feira (viernes, vendredi ou o dia de Vénus), em que termina o trabalho e se corre para o oposto, o prazer; sábado (dia de Saturno), em que se descansa e se maturam as ideias e os sentimentos pessoais; e domingo (sunday), o dia do Sol e do reencontro com a lucidez e a acção.
Nada melhor do que um dia nublado e preguiçoso para nos presentear com a tranquilidade necessária para preparar mudanças. E o auxílio da fase da Lua para completar o processo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

excessos e conflitos

Fotografia de Maria Isabel Mota
O conflito nasce sempre da noção que temos de estarmos separados. Como indivíduos, como corpos diferentes, é difícil lembrarmo-nos de que pertencemos todos à mesma consciência, ou ao mesmo material divino, poderoso e ilimitado.
Quando o conflito surge, o alerta é para a demonização que estamos a fazer do outro, ou dos outros. Não nos vemos como indissociavelmente ligados, a outra escala, e que a beleza está em, apesar da possibilidade da experiência pessoal, não deixarmos de ser um.
A extrema identificação com alguma coisa é sempre uma limitação. Um clube de futebol, um país, uma região, uma raça, uma religião, têm balizas definidas que as separam das outras coisas. E nessas balizas não cabem mais do que alguns pormenores.
É um erro confundir algumas identificações com o potencial ilimitado de que dispomos. E essas identificações excessivas, pouco dispostas à maleabilidade, é que suscitam o conflito. 
Assim como as rochas que, com a sua aparência de invencibilidade, se sujeitam à erosão de ventos, águas e areias, também sofremos na pele o desgaste dos limites que nos impomos. No final, como as rochas, desfazemo-nos no pó e no resto dos elementos, voltando à natureza que nos deu corpo, mais uma vez parte indissociável do todo.
Devíamos entender o conflito como a nossa resistência ao entendimento do nosso papel no conjunto das coisas. E ter a coragem de alterar de imediato a nossa postura, para eliminar o sofrimento e o desgaste em que nada se ganha.
Pensar ainda que, como consciência colectiva, não é só a nós que prejudicamos com os nossos limites. Como uma infecção, contaminamos tudo à nossa volta. Inocentes, espectadores passivos e quem participa do conflito. Todos perdemos.
Evitar o conflito é assumir que os resultados jamais serão os que esperamos, uma vez que não há acordo possível. Não será então mais inteligente prescindir dos limites excessivos e rendermo-nos a uma paz sem sofrimentos adicionais?

sábado, 1 de outubro de 2016

memória

fotografia de Maria Isabel Mota
O teu medo diz-te que o teu ponto de atracção não inclui o desejas. (Abraham-Hicks)

A memória não é tudo o que somos. Nem sequer é fiável, porque se mistura com a imaginação para preencher as lacunas que o tempo vai deixando. É uma gaveta onde guardamos fragmentos de coisas que depois nos aparecem desligados de outros contextos que não as emoções que nos suscitam.
Ainda por cima está deslocada no tempo. Nunca se refere ao presente, que é o sítio onde estamos agora e devemos viver. E sendo um punhado de fragmentos, a razão porque insistimos em nos identificar com ela é apenas por ser uma espécie de âncora da nossa existência. Uma base de dados, um caderninho de apontamentos para não nos esquecermos de que estamos nesta vida.
São notas que não temos de repetir, embora isso nos pareça muito seguro, uma questão de carácter ou qualquer outra crença limitativa.
A memória transmitida pelos nossos pais, com o objectivo de nos proteger de coisas que ameaçam a integridade física é o que nos permite aprender a conhecer as limitações do corpo físico. Mas vêm acompanhadas das memórias pessoais deles, que não correspondem a uma experiência pessoal e, no entanto, tendem a moldá-la.
Alerta-nos para muitas situações desfavoráveis, possibilitando escolhas mais avisadas, mas mesmo assim não é tudo o que somos. Há infinitas possibilidades para viver, experimentar, gozar.
Confiar demasiado na memória ou insistir que é ali e apenas ali que devemos ficar é uma negação do possível. É uma afirmação do nosso medo de avançar. E a recusa de partirmos em busca do que desejamos.
Uma ferramenta é útil quando a dominamos e usamos para o que foi desenhada. Mas não nos passa pela cabeça definirmo-nos como um martelo ou um alicate e andar por aí a dizer que somos um ou outro. Podemos usá-los para atingir o que queremos e fazê-lo de forma criativa, mas isso é apenas uma gota num oceano.
A memória regista, não cria, não muda. Mas influencia determinantemente as nossas escolhas e decisões. É importante conhecê-la e dominar as suas qualidades, mas não viver em função dela. É apenas parte da nossa colecção de manuais de vida, não a vida toda.
Os seus registos incluem muito medo, todo passado. Não é necessário projectá-lo também no futuro, um exercício que não nos tira da cepa torta.
Se a memória passa de aviso a medo, são dois alertas que recebemos para perceber que estamos a afastar-nos do que realmente queremos. Há sempre outra forma de ver as coisas e, sobretudo, muito mais a viver além das encolhas do medo. Sem outros limites que os da coragem e da vontade. Acção!


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

'Sexo Inútil', de Ana Zanatti: honestidade e senso comum

Capa da Sextante baseada numa obra de Tim Madeira e Ana Zanatti; fotografia da autora de Inácio Ludgero
A primeira razão para se ler O Sexo Inútil, de Ana Zanatti, é a facilidade com que se começa e acaba a leitura. Alguns livros, como este, têm o condão de nos manter suficientemente interessados para não descansarmos enquanto não chegamos ao fim. Não se assustem, pois, com o facto de ser um ensaio, e longo, porque se lê como um romance, embora não o seja. A autora é uma grande contadora de histórias e demonstra-o aqui muito bem.
A segunda é por ser um livro que se pode dar a ler a qualquer pessoa. Sem receio de chocar ninguém , porque tudo é dito muito directamente, mas sempre de forma muito correcta. "Apesar do meu fraco apelo por experiências radicais, a minha natureza que tende para a harmonia, a conciliação e a paz, perante a liberdade ameaçada reage explosivamente. Era assim e assim se mantém." (pp. 464), escreve a autora. A sua explosão surge, no entanto, da honestidade interiorizada, não da defesa que despoleta o ataque gratuito.
Ana Zanatti diz tudo o que deve ser dito, sem afrontar ninguém. Não se esquece de ver o outro lado e evita os julgamentos de valor que não passam também de preconceitos. E esta é a terceira razão para ler o seu livro.
Outra boa razão (quarta) para meter o nariz nesta não ficção é o facto de fazer um bom apanhado de todos acontecimentos que promoveram a visibilidade e os direitos lgbti em Portugal e lá fora, assim à laia de história muito breve. As notas são informativas, extensas q.b. e não perturbam a leitura. Além disso, a autora adiciona inúmeras referências a escritores e obras com excelentes contributos para alargar os nossos horizontes como leitores e como seres humanos interessados em fazer da vida uma experiência com sentido.
Depois, cada capítulo tem o título de um filme, o que nos obriga a pensar numa maratona cinéfila de livro na mão, a viajar pelas pequenas e grandes inspirações que deram origem a uma classificação desse tipo. Sugestivo e a adicionar como quinto motivo para se ler este livro.
O fio condutor de todo o trabalho é a longa troca de correspondência com uma jovem cujos problemas cativaram a atenção da autora. É fácil a identificação do leitor com inúmeras experiências de ambas. Mais fácil ainda se percebermos como determinadas posturas são comuns a todos nós e não se restringe ao âmbito da orientação sexual. Sexto motivo do interesse desta obra.
Por fim, destaque para a compaixão implícita nas suas quinhentas e muitas páginas. No sentido do amor pelo outro e por um honesto esforço para o entender. Na correspondência, nas entrevistas feitas com homossexuais e familiares, e nas reflexões da autora.
A mudança em nós não se dá sem o contributo dos outros e, só com essa transformação pessoal podemos almejar um comportamento diferente dos que nos rodeiam. A discriminação com base na orientação sexual é apenas mais um pretexto para conformar a nossa liberdade aos limites de crenças insensatas, que surgem de escassas ou inexistentes reflexões sobre o que pode ou não pode acontecer na nossa vida.
O sexo inútil é, por todas as razões acima, um livro útil para quem não se conforma e mantém dentro de si a noção que tudo pode ser melhor se amadurecermos ideias mais correctas sobre o que é realmente a nossa liberdade como indivíduos e como sociedade. Com honestidade e senso comum, como nos sugere Ana Zanatti.